quarta-feira, 7 de março de 2018

Arte de consolo e arte de desconforto em "Blitz" de David Trueba

"Blitz" é o primeiro romance que leio da Tusquets Editores, e do escritor e cineasta espanhol David Trueba.
Beto Sanz é um arquiteto que está enfrentando o atual conhecido péssimo momento para o profissional independente que desempenha trabalho criativo: falta de espaço, salários sub-humanos, desvalorização. Participar de um concurso de Munique, para ele, recém-convidado, seria uma das poucas satisfações que um trabalho à beira da falência poderia conceder.
Em Munique, o que era para ser uma ida para expor seu projeto, se transforma em uma reviravolta em sua vida. Ele recebe um sms com uma declaração amorosa da namorada Marta, no entanto, não endereçado a ele. Marta, que havia viajado junto com Beto, havia retomado um namoro antigo com um cantor uruguaio e mantinha em segredo a relação. Em um momento de descontração em um café, tudo é trazido à tona pelo sms. 
Os dois terminam o namoro e Beto sente sua condição ainda mais desgraçada e estrangeira. Entrega-se a partir daí a dias de porre em bancos de praça, autocalúnias, e se envolve com Helga, mulher madura e solteira, que ficara responsável pela recepção do casal e também pela tradução da fala de Beto para o público alemão.
Beto tem monólogos ótimos no estado de introspecção induzido por essa circunstância; e também diálogos inteligentes com Helga. Esse momento é um dos pontos altos da narrativa. Consistem em passagens inteligentes e irreverentes especialmente por revirar tabus sociais - despontando delas, principalmente, alguns relacionados à questão do relacionamento entre duas pessoas de idades distantes. 
No entanto, outro assunto tem igual relevância e é de consideração mais urgente. Trata-se, antes de qualquer coisa, de um momento de coragem no livro. É um momento de confrontação com o fluxo do mundo. Surge no conteúdo da exposição de Beto no congresso; das intenções de sua proposta arquitetônica. 
Beto competia em um concurso na categoria "Perspectivas de Futuro", cujo mote era recriar uma intervenção paisagística, não importando se o resultado fosse factível ou razoável. "Um concurso de contos no qual, em vez de contar um conto, contávamos um jardim", nas próprias palavras do personagem. Beto projetou "um parque para adultos. Um espaço externo urbano, simples e realista. Com bancos de leitura em que alguém pudesse parar para descansar durantes alguns minutos roubados do trabalho. A principal novidade era que ele continha um bosque de ampulhetas, de escala humana, que ao serem viradas davam ao usuário um tempo de abstração."
O arquiteto, muito corajosamente, propõe a um mundo embarcado na fantasia, na artificialidade e na fuga, a redescoberta do mundo real, a paixão pela realidade concreta e humana, por mais defeituosa que seja; e uma vida cada vez mais orgânica.
No momento de sua exposição, marcada por essa sua relevante reflexão, outro arquiteto competidor, chamado Àlex Ripollés, intervém e sua fala desemboca uma discussão entre ambos bastante necessária, sobre a função e a recepção da obra artística. O que se torna um embate entre os arquitetos expõe como a virtude artística do apelo humano, de conforto quase consolo, está, senão perdida, sendo bastante desencorajada, por uma retórica da provocação sempre desconfortável e de maus-tratos ao público. 
A passagem propõe, entre outras importantes reflexões, uma oportunidade de uma reavaliação importante dos compromissos da obra artística e da responsabilidade de seu papel e de sua recepção. 
Por essas e outras, "Blitz" se afirma como um livro de leitura merecida. 
À passagem em questão:

"Àlex me olhou com uma expressão irônica em seu rosto incontestavelmente atraente quando comecei a falar. O que eu disse foi o seguinte: Não sei para que serve uma paisagem. Porque uma paisagem é um belo jardim inglês, mas também a enorme cerca para barrar imigrantes africanos em Melilla. Acho que foi Robin Lane Fox que perguntou, em uma de suas aulas em Oxford, para que servia um jardim, e ouviu uma resposta maravilhosa de um aluno: para os casais se beijarem. A vida se desenrola em vários lugares, e nossa profissão não pode evitar que esses lugares sejam associados às experiências pessoais de cada um. No mesmo parque seus filhos podem dar os primeiros passos ou seu avô morrer de um ataque cardíaco. Às vezes tento imaginar o que Olmsted pensava quando projetou os jardins do Central Park em Nova York, mas na época ele podia dar forma à grande urbe, e nós trabalhamos num momento diferente da história das cidades, trabalhamos sobre o que já está feito, recuperamos coisas. Queria que os espaços nos fizessem descobrir o mundo que existe oculto aos nossos olhos. Porque precisamos voltar a olhar para o mundo real, não embarcar na ficção, nem criar fantasias, nem continuar como fugitivos. Precisamos de um espelho que funcione como antídoto, de modo a voltarmos a nos apaixonar por nós mesmos, pela realidade concreta e humana, por mais defeituosa que seja. Eu não tinha pensado nem ensaiado a minha fala, mas me parecia correto defender a ideia da minha proposta de jardim como uma teoria geral da paisagem como referencial arcaico, talvez em desuso diante do fascínio pela tecnologia e pela engenhosidade que os outros participantes demonstraram. Não podemos permitir, prossegui, que a arquitetura e o urbanismo sejam divertidos para quem os têm por profissão e indesfrutáveis para os que terão de suportá-los. O grande avanço, o grande avanço de verdade será encontrarmos a nós mesmos novamente e descobrirmos a casa, a rua, o tempo, o amanhecer, o entardecer, o sol, as nuvens, o orgânico. Talvez eu estivesse começando a me sentir meio ridículo, mas as interrupções em que Helga traduzia para o alemão ajudavam. Renovavam as minhas forças. Sempre me lembro, continuei, de algo que ouvi acerca de Buñuel: ele falava que era ateu, que não acreditava em Deus, salvo o deus inventado pelos homens, na mentira que erguiam para se consolar. Mas que diante da ciência e da tecnologia como soluções de alta precisão para tudo, preferia, de longe, acreditar na ideia destrambelhada de Deus.
Quando terminei, Àlex Ripollés brincou a respeito da minha fala. Em alguns momentos parecia mais uma aula de religião, você realmente prefere Deus em lugar de um bom celular? Para mim tudo o que você falou parece um tratado cujo título poderia ser jardinagem como autoajuda. O público riu após Helga traduzir. Não concordo com nada, embora sinceramente tenha adorado o projeto que você apresentou no concurso, as ampulhetas para sentar em frente e ver o tempo passar. Mas, prosseguiu, nossa profissão não deve consolar o cidadão, os espaços públicos não são centros de reabilitação, nós temos que sacudir as pessoas, mexer com elas, criticar. Nunca acalmar, é justo o contrário. Temos que desafiar, agitar, bater, incomodar as pessoas. Helga traduzia quase ao mesmo tempo que Àlex falava.
Ah, é? É disso que você gosta? É esse o nosso trabalho? Vamos ver então, interrompi. Deixa eu experimentar com você, falei, e me levantei e comecei a sacudi-lo pela gola e a balançar sua cadeira com rodinhas. É isso que você acredita que temos que fazer com as pessoas, de verdade? Isso que estou fazendo agora contigo? Sabe o que eu sempre quis fazer com um filme cruel em que os personagens são humilhados e maltratados? Aplicar essa mesma disciplina ao diretor, ao roteirista."

David Trueba. "Blitz". Trad. Miguel Del Castillo. São Paulo: Planeta do Brasil/ Tusquets Editores, 2017, p. 39-41.

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